segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Só para loucos


Se examinarmos a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua individualidade, pois toda individualização superior se orienta para egotismo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; no entanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos intelectuais e dos artistas pertencem a esse tipo. Só os mais fortes entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram entrar no espaço cósmico; todos o demais se resignam ou selam pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última instância têm de professar a sua crença para viver. A vida deste infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desaventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor. São os trágicos e seu número é pequeno. Mas os outros, os que permaneceram submissos, a cujo talento a burguesia concede com frequência grandes homenagens, a estes se abre um terceiro reino, um mundo imaginário, mas soberano: o humor. Aos inquietos lobos da estepe, a esses contínuos e terríveis pacientes, aos que está negado o apoio necessário para o trágico, para subir ao espaço sideral, que se sentem chamados para o absoluto e, no entanto, não podem nele viver; para esses, quando seu espírito se fez duro e elástico na dor, abre-se-lhes o caminho conciliante do humor. O humor é sempre um pouco burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de compreendê-lo. Em suas imaginárias esferas realiza-se o ideal intrincado e multifacetado de todos os lobos da estepe; aqui é possível não apenas celebrar o santo e o libertino ao mesmo tempo e unir um pólo ao outro, mas também incluir os burgueses na mesma afirmação. É possível estar-se possuído por Deus e sustentar o pecador, e vice-versa, mas não é possível nem ao santo nem ao libertino (nem a nenhum outro absoluto) afirmar aquele meio-termo fraco e neutro que se chama burguês. Somente o humor, a magnífica descoberta dos que foram destituídos em seu vôo para o mais alto, dos quase trágicos, dos infelizes superdotados, só o humor (talvez o produto mais genuíno e genial da Humanidade) atinge esse impossível e une todos os aspectos da existência humana nos raios do seu prisma. Viver no mundo como se não fosse mundo, respeitar a lei e no entanto colocar-se acima dela, possuir uma coisa "como se não a possuísse", renunciar como se não tratasse de uma renúncia, todas essas proposições favoritas e formuladas com frequência, todas essas exigências de uma alta ciência da vida, somente pode realizá-las o humor.

                                                 Trecho do livro O LOBO DA ESTEPE, de Herman Hesse.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Teerã: capital do Irã

Era início de mais um longo dia. Ainda com bastante sono, já falava com um dos fornecedores mais tagarelas que tínhamos na empresa. Como pode uma pessoa estar tão animada e a fim de falar naquela hora da manhã? Monossilabicamente, eu ia concordando com tudo que o Sr. Antônio dizia: "Que coisa". " Pois é". "É fogo, viu". E a conversa estava longe de terminar. Antônio tem uma empresa no Butantã, próximo à Cidade Universitária. É um senhor de sessenta e poucos anos, carioca, engraçado, bom de papo, mas naquele momento não estava com o mínimo saco de ouvir suas histórias. Eis que sua conversa começaria a ficar mais interessante: "Querido, aquilo não se faz. É uma QUESTÃ de princípios. QUESTÃ de princípios, querido!". Puta que pariu! Aquilo realmente me acordou de vez. "Questã" é foda! Acho que nem Camões falava "questã" de tão antiquado que era já em sua época. Mas com essa coisa de reforma ortográfica, a gente fica sempre com o pé atrás e, por isso, resolvi averiguar. Realmente "questã" não existe (ufa!).
O sr. Antônio vira e mexe ainda solta uma "questã". Percebo que ele gosta dessa palavra e até pronuncia ela com certo prazer. Logicamente, eu não digo nada. Uma questão de respeito.